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Uma História Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras

by Miguel Ramalhete Gomes, investigador do CETAPS e Doutorando da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Citação: Gomes, Miguel Ramalhete, “Uma História Natural da Utopia: O Caso das Cidades Obscuras”, E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.o 12 (2011). ISSN 1645-958X.

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I

Uma criança que passeie por um museu de história natural cumpre, sem o saber, um ritual centenário marcado pelo fascínio não só perante os objectos que ocupam as prateleiras ou aparecem suspensos no ar como também pelo espaço do próprio museu. Qual é o encantamento particular dos museus de história natural? Um dos motivos será certamente o facto de aí a natureza se oferecer como objecto lúdico. Empalhada ou transfigurada numa montagem de ossos fossilizados, a natureza desperta o instinto de brincar. Animais desaparecidos ou simplesmente perigosos quase se oferecem ao toque. Segundo a antropologia filosófica de Giorgio Agamben, o jogo nasce da apropriação de um ritual cuja utilidade se esvaziou; este repete-se, já para além de qualquer função, como mecanismo autónomo e lúdico (cf. Agamben 2002: 127-129). De certa forma, ao ser transformada em objecto inanimado, ao despojar-se da sua actividade própria, a natureza ganha também ela um lado lúdico.1) Como Museum through a Lens (cf. Snell & Parry 2009), um volume recente coligindo fotografias tiradas ao Natural History Museum entre 1880 e 1950, demonstra, outro dos atractivos dos museus de história natural é o facto de o próprio museu ser um objecto histórico e poder preservar o contexto em que se elaborava história natural no século XIX. O desenvolvimento das ciências transformou necessariamente esse contexto oitocentista e remeteu-o ao domínio da museologia. O local onde se escreveu e montou alguma história natural foi ele mesmo alvo das contingências da história humana, entre elas a Segunda Guerra Mundial. A história natural exibe assim uma outra história, que é humana.

Por outro lado, que tipo de história está aqui em causa? A história natural depois de Darwin tem sido a história da evolução – encontrando assim o verdadeiro objecto de uma história digna desse nome: a mudança. Contudo, é ainda comum remeter a história humana para o domínio natural no sentido de lhe encontrar um ponto de estabilidade. A ideia de natureza humana, tal como esta é usada actualmente nas humanidades, visa precisamente encontrar uma constante, algo que permaneça sempre ao abrigo da história, por se colocar do lado da natureza. Como vimos, contudo, a história natural hoje em dia já nem esse refúgio admite. É talvez esta relação conturbada e paradoxal entre história natural e história humana que alimenta o fascínio quase inesgotável produzido pelos museus de história natural e pelos seus fósseis de dinossauros, animais empalhados, exemplares de minerais, rochas lunares, meteoritos e muitas outras coisas – mas acima de tudo os ossos de hominídeos, que marcam esse momento sempre impressionante de passagem de uma história para a outra. Aí, onde o museu de história natural acaba, começa o museu de história antiga.

Se, por um lado, a teoria da evolução de Darwin veio dar razão a uma nomenclatura nem sempre reflectida, mostrando como de facto se trata de história natural, por outro lado a ciência da passagem do século XIX para o século XX tratou de relegar o conceito de história natural para o museu dos conceitos mais ou menos superados. À história natural, um conceito vago e demasiado abrangente, sugerindo algum amadorismo, sucederam-se na história das ciências as chamadas ciências históricas: a biologia, a geologia, a paleontologia e a astronomia. A história natural passou a designar uma forma histórica de praticar as ciências naturais. Outra noção de história natural é ainda a que designa uma versão popularizada ou divulgadora das ciências naturais. A ideia de história natural sofreu, assim, ela mesma, uma mudança histórica. Se o conceito perdeu o referente que em tempos teve, por outro lado a ideia de história natural corre o risco de evocar um entendimento determinista da história, equiparada à natureza e alegadamente regida por leis imutáveis. As infiltrações conceptuais permitidas por essa expressão ambígua têm de facto ocorrido, produzindo efeitos por vezes inesperados e frequentemente mal interpretados. O prefácio à primeira edição de Das Kapital (1867) fornece um caso exemplar. Aí, Marx usa sistematicamente e de forma variada a linguagem das ciências naturais para descrever o seu próprio esforço no sentido de descrever o modo de produção capitalista. Encontramos comparações organicistas a células – “the economic cell-form” (Marx 1990: 90) –, microscópios e reagentes químicos (cf. ibidem). Marx refere-se mesmo às leis naturais da produção capitalista, das quais diz que operam com uma necessidade férrea (cf. idem: 91), e afirma ainda investigar as leis económicas do movimento da sociedade sua contemporânea, a qual diz ter fases naturais. Aliás, o autor faz por marcar a sua posição claramente:

My standpoint, from which the development of the economic formation of society is viewed as a process of natural history, can less than any other make the individual responsible for relations whose creature he remains, socially speaking, however much he may subjectively raise himself above them.

idem: 92, itálicos meus

Por outro lado, a insistência de Marx em usar este vocabulário científico deve ser alvo de alguma suspeita, sobretudo tendo em conta a atenção frequentemente dada pelo mesmo Marx a tentativas ideológicas de naturalizar questões sociais (cf. Adorno 2006b: 117-118). No mesmo volume, referindo-se à lei da acumulação capitalista, Marx usa o seguinte qualificativo: “mystified by the economists into a supposed law of nature” (Marx 1990: 771). Pormenores como este poderão talvez qualificar também a nossa recepção do cientismo de Marx, uma recepção que muitas vezes lhe omite a veia paródica.2)

Se o cientismo de Marx nos incomoda de uma forma que não teria incomodado no século XIX, convém notar que importações conceptuais e metafóricas deste tipo não se faziam apenas de forma unidireccional. Em The Origin of Species, ao discutir a teoria da imperfeição dos registos geológicos, Darwin desenvolve uma metáfora emprestada a Charles Lyell e compara o estudo da história natural à leitura da história humana:

For my part, following out Lyell’s metaphor, I look at the natural geological record, as a history of the world imperfectly kept, and written in a changing dialect; of this history we possess the last volume alone, relating only to two or three countries. Of this volume, only here and there a short chapter has been preserved; and of each page, only here and there a few lines. Each word of the slowly-changing language, in which the history is supposed to be written, being more or less different in the interrupted succession of chapters, may represent the apparently abruptly changed forms of life, entombed in our consecutive, but widely separated, formations.

Darwin 2008: 229

A comparação que Darwin faz entre a investigação de um registo geológico e a interpretação filológica de uma história fragmentária da espécie humana pode não passar de uma metáfora, um dito espirituoso com que terminar um capítulo.3) Por outro lado, podemos detectar no livro de Darwin, e em maior medida na apropriação posterior de teorias evolucionistas, a passagem de conceitos vindos do estudo da história humana. A ocasional identificação de evolução com o melhoramento simples – em vez do mais frequente e mais neutro tema da adaptação ao ambiente – justificou o uso da teoria da evolução para alargar o mito do progresso ao domínio da história natural, ao passo que a ideia de sobrevivência dos mais aptos, que Darwin só mais tarde adoptou (e que não era sua, mas do filósofo Herbert Spencer), veio abrir a porta ao darwinismo social, que identificava, e assim sancionava, a sociedade capitalista e os seus mecanismos (competição, lucro, exclusão dos membros mais fracos) com as leis da natureza (cf. Beer 2008: xix-xx; Jameson 2007: 95).4)

Segundo Stephen Jay Gould, a identificação implícita entre evolução e progresso persiste ainda em várias representações populares da teoria da evolução: “The familiar iconographies of evolution are all directed – sometimes crudely, sometimes subtly – toward reinforcing a comfortable view of human inevitability and superiority” (Gould 2000: 28). Gould analisa as representações visuais mais comuns – a “scala naturae” e a ainda mais canónica marcha do progresso – e aponta a sugestão nelas veiculada de um progresso inevitável que termina necessariamente nesse animal favorito dos humanistas – o Homem. Uma das paródias à marcha do progresso que Gould refere joga aliás com a ambiguidade e presunção do termo. A ilustração mostra duas marchas, uma sobre a outra: por cima, a do Homem, desde o macaco ao homem actual, e, por baixo, a da mulher (sem maiúscula), que permanece idêntica do início ao fim da marcha, imobilizada na pose de lavar o chão (cf. idem: 34). A fatuidade humanista projecta assim na evolução um renovado antropocentrismo destinado a auto-congratular-se com esse milagre da natureza que é o Homem, invariavelmente ilustrado como masculino.

Em Wonderful Life – The Burgess Shale and the Nature of History, Gould usa o exemplo dos fósseis do período Câmbrico descobertos nos xistos de Burgess, no Canadá, para defender a activação do conceito de história no par de palavras que compõe a expressão “história natural”. Gould argumenta que a história da natureza não se rege meramente por leis naturais, mas também, e de forma determinante, por uma sequência de acontecimentos contingentes, tais como extinções em massa provocadas por eventualidades externas. A contingência é, aliás, o conceito basilar da teoria de Gould:

I am not speaking of randomness (for E had to arise, as a consequence of A through D), but of the central principle of all history – contingency. A historical explanation does not rest on direct deductions from laws of nature, but on an unpredictable sequence of antecedent states, where any major change in any step of the sequence would have altered the final result. This final result is therefore dependent or contingent, upon everything that came before – the unerasable and determining signature of history.

idem: 283

Gould usa a metáfora de uma fita da vida que o cientista faria retroceder de volta ao início e depois tocaria de novo. Ao contrário de uma fita magnética, a fita da vida produziria sempre um resultado diferente:

[Any] replay of the tape would lead evolution down a pathway radically different from the road actually taken. But the consequent differences in outcome do not imply that evolution is senseless, and without meaningful pattern; the divergent route of the replay would be just as interpretable, just as explainable after the fact, as the actual road. But the diversity of possible itineraries does demonstrate that eventual results cannot be predicted at the outset.

idem: 51

A conclusão que se retira da teoria de Gould permite, por um lado, salientar a improbabilidade, por oposição à inevitabilidade, da evolução humana (cf. idem: 24), e, por outro lado, mostrar a validade inesperada de um conceito como o de história para uma disciplina como a paleontologia. No que resta destas considerações preliminares, interessa-me precisamente o ponto em que história e natureza se encontram.

Em Die deutsche Ideologie (1845-1846, mas publicada postumamente) Marx e Engels avançam, por seu lado, uma visão conjunta da história natural e da história humana que se revelará altamente produtiva, num parágrafo que foi eliminado de uma versão posterior do texto:

We know only a single science, the science of history. One can look at history from two sides and divide it into the history of nature and the history of men. The two sides are, however, inseparable; the history of nature and the history of men are dependent on each other so long as men exist.

Marx & Engels 1998: 345)

Esta visão ecológica de conjunto (cf. Adorno 2006b: 122) estimula a produção de usos filosóficos do conceito de história natural, que podemos encontrar sobretudo em determinados textos de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Será de notar antes de mais que aos textos destes dois autores se aplica um aviso que Adorno faz no início do seu ensaio “Die Idee der Naturgeschichte”, em que explica que a ideia de história natural que irá desenvolver não se refere nem a um sentido tradicional e pré-científico de história natural nem a uma história natural em que a natureza é o objecto das ciências naturais (cf. Adorno 2006a: 252; cf. Hanssen 2000: 51; cf. Hullot-Kentor 2006: 238-239).

Benjamin não terá encontrado inspiração para um conceito novo de história natural em Marx e Engels, mas sim no drama alemão do Barroco, o “Trauerspiel”. O livro Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928) foi aliás escrito antes do período marxista do autor. Segundo Benjamin, a natureza aparece no universo dramático dos autores do Barroco alemão por meio de analogias metafóricas entre a história e o ciclo da natureza, analogias estas que permitiam evitar a reflexão ética (cf. Benjamin 2009: 89). Conflitos éticos e históricos apareciam como demonstrações de história natural (cf. idem: 90). Benjamin argumenta que na poesia pastoril, por exemplo, a história se funde com o cenário por meio de versos comemorativos deixados por pastores em memória dos heróis, pelo que o movimento cronológico é concebido através de uma imagem espacial (cf. idem: 92), à maneira dos lugares de memória que começavam a ser teorizados pela mesma altura por Maurice Halbwachs e mais tarde por Pierre Nora. Outro exemplo de história natural é o drama de destino, em que o destino não é um fenómeno nem puramente natural, nem puramente histórico (cf. idem: 129). O conceito de história natural começa a iluminar-se quando Benjamin nota que este é dialéctico e se prende intimamente com o tema da alegoria:

Whereas in the symbol destruction is idealised and the transfigured face of nature is fleetingly revealed in the light of redemption, in allegory the observer is confronted with the facies hippocratica of history as a petrified, primordial landscape. Everything about history that, from the very beginning, has been untimely, sorrowful, unsuccessful, is expressed in a face – or rather in a death’s head.

idem: 166

Referindo-se aos livros de emblemas, Benjamin argumenta que é a partir da estranha combinação de natureza e história que surge o modo alegórico de expressão (cf. idem: 167), em que a natureza, na sua representação emblemática de sentidos e significados humanos, permanece irremediavelmente diferente de uma concretização histórica (cf. idem: 170). A relação dialéctica entre história e natureza encontra o seu termo definidor no conceito de transitoriedade:

The word “history” stands written on the countenance of nature in the characters of transience. The allegorical physiognomy of the nature-history, which is put on stage in the Trauerspiel, is present in reality in the form of the ruin. In the ruin, history has physically merged into the setting. And in this guise history does not assume the form of the process of an eternal life so much as that of irresistible decay.

idem: 177-178

A ruína marca materialmente o momento de fusão entre história e natureza, em que a transitoriedade do histórico coincide com a transitoriedade do mundo natural; por outro lado, e de acordo com a relação dialéctica entre os dois termos, o momento artístico é projectado no mundo natural através do interesse barroco pela ruína e da produção da ruína como artefacto em cenários de representações pictóricas (cf. idem: 178). A transitoriedade transforma-se numa ontologia do histórico nos poetas do Barroco. Segundo Benjamin: “In nature they saw eternal transience, and here alone did the saturnine vision of this generation recognise history” (idem: 179). Este conceito de transitoriedade eterna torna-se o lugar da alegoria: “Allegory established itself most permanently where transitoriness and eternity confronted each other most closely” (idem: 224).

Benjamin contemplava o conceito de história natural no contexto de um estudo estético-filosófico. Não sabemos se, não fosse a sua morte prematura em 1940, na fronteira franco-espanhola, quando tentava escapar da França ocupada pelos nazis, não teria continuado a desenvolver o conceito noutros contextos. Walter Benjamin’s Other History: Of Stones, Animals, Human Beings, and Angels, de Beatrice Hanssen, consiste precisamente numa tentativa de explorar esse conceito e possíveis derivações em outros textos de Benjamin. A ideia de história natural revelou-se, contudo, de grande utilidade para Theodor W. Adorno, que se inspirou em grande parte no livro de Benjamin sobre o drama trágico alemão para o texto que apresentou em 1932 junto do grupo de Frankfurt da Kant-Gesellschaft. A comunicação, intitulada “Die Idee der Naturgeschichte”, só veio a ser publicada em 1973, no primeiro volume das obras completas.6) Tendo emigrado para o Reino Unido e mais tarde para os Estados Unidos, Adorno conseguiu escapar ao nazismo e teve a oportunidade de desenvolver este conceito em seminários na Universidade de Frankfurt e em Negative Dialektik (1966).

A discussão de Adorno sobre a ideia de história natural prende-se com as discussões sobre ontologia que ganharam um relevo considerável na Alemanha no seguimento do trabalho e crescente influência de Martin Heidegger, sobretudo após a publicação de Sein und Zeit (1927). Adorno explica que a questão da ontologia é aquilo que ele entende por natureza no seu ensaio. O objectivo do ensaio anuncia-se na intenção de superar dialecticamente a tradicional antítese entre história e natureza, entre aquilo que aparece na história como Ser predeterminado e programado pelo destino e o qualitativamente novo, que supera a mera reprodução identitária daquilo que sempre foi (cf. Adorno 2006a: 252-253). Num prenúncio do que virá a ser uma crítica implacável a Heidegger, sobretudo em Jargon der Eigentlichkeit (1964), Adorno revê um conceito que parece cumprir uma função semelhante ao de história natural: a ideia de historicidade, que Heidegger usou para contrariar a tendência ahistórica patente no trabalho de, por exemplo, Max Scheler. Numa revisão inteligente dos termos do problema, Heidegger havia transformado a história, em toda a sua agitação, na estrutura ontológica básica, que se torna uma qualidade fundamental da existência (Dasein) humana (cf. idem: 256). A crítica de Adorno começa por fazer notar que a categoria da historicidade é incapaz de lidar com o problema da contingência histórica, acabando por desaguar numa tautologia:

I mean nothing else than that the attempt of neo-ontological thought to come to terms with the unreachability of the empirical continually operates according to one schema: precisely where an element fails to dissolve into determinations of thought and cannot be made transparent but rather retains its pure thereness, precisely at this point the resistance of the phenomenon is transformed into a universal concept and its resistance as such is endowed with ontological value.

idem: 257

Adorno encontra neste género de solução tautológica elementos idealistas que redundam no tema clássico da identidade entre sujeito e objecto (cf. idem: 259). A transformação daquilo a que Adorno virá a chamar não-identidade num conceito universal em que se baseia uma ontologia derrota a função resistente do fenómeno, ignorando de que forma este contém um lado inacessível à conceptualização, à maneira da coisa-em-si kantiana: “Such nonidentity would quite closely approach the Kantian thing-in-itself” (Adorno 2005a: 254). Ao contrário de Heidegger, que funde história e ontologia na categoria da historicidade, uma categoria que mais não faz do que naturalizar a história (cf. Hullot-Kentor 2006: 244), ao mesmo tempo que mantém um humanismo tácito por via da categoria de “Dasein” (cf. Hanssen 2000: 22), Adorno propõe uma solução caracteristicamente dialéctica:

If the question of the relation of nature and history is to be seriously posed, then it only offers any chance of solution if it is possible to comprehend historical being in its most extreme historical determinacy, where it is most historical, as natural being, or if it were possible to comprehend nature as a historical being where it seems to rest most deeply in itself as nature. It is no longer simply a matter of conceptualising the fact of history as a natural fact toto caelo (inclusively) under the category of historicity, but rather to retransform the structure of inner- historical events into a structure of natural events. No being underlying or residing within historical being itself is to be understood as ontological, that is, as natural being. The retransformation of concrete history into dialectical nature is the task of the ontological reorientation of the philosophy of history: the idea of natural-history.

Adorno 2006a: 260

Adorno remete em seguida para Georg Lukács e Walter Benjamin para desenvolver o argumento. Usando o conceito de “segunda natureza”, tal como Lukács o define, isto é, como o mundo das convenções em que as coisas se reificaram e deixaram de produzir sentido, Adorno nota que em Lukács a história, enquanto passado, se metamorfoseia em natureza, pelo que a história petrificada se revela como natureza ou a vida petrificada da natureza como produto do desenvolvimento histórico (cf. idem: 262). Essa metamorfose leva a que Adorno identifique como ponto fulcral o tema da transitoriedade:

The deepest point where history and nature converge lies precisely in this element of transience. If Lukács demonstrates the retransformation of the historical, as that-which-has- been into nature, then there is the other side of the phenomenon: nature itself is seen as transitory nature, as history.

ibidem

O tema da transitoriedade, em que natureza e histórica se encontram imbricadas, conduz Adorno a Benjamin e à materialização da transitoriedade na ruína e no fragmento em que tudo aquilo que existe se transforma (cf. idem: 265). A conclusão de Adorno, uma conclusão que irá reaparecer em textos mais tardios, prende-se com uma filosofia da história: “history, as it lies before us, presents itself as thoroughly discontinuous, not only in that it contains disparate circumstances and facts but also because it contains structural disparities” (idem: 266).

Em 1964/1965, em duas das sessões de um seminário sobre história e liberdade, o conceito de história natural é novamente abordado, desta vez no contexto da preparação de Negative Dialektik. Ao contrário do ensaio de 1932, que compreensivelmente, dado o momento histórico, mantinha camufladas as referências marxistas, os seminários de 1964/1965 e a respectiva secção em Negative Dialektik explicitam e perspectivam de forma diferente muitos dos temas do anterior ensaio (cf. Hullot-Kentor 2006: 241).7) No primeiro seminário, Adorno parte de Hegel e da ideia de progresso da história como um mecanismo infernal ou um matadouro, uma ideia que surge no início do curso de Hegel sobre filosofia da história, para argumentar que o momento em que a história parece progredir de forma mais desinibida é o momento em que esta aparece como natureza cega, em vez de se distanciar dela. A história, até então (ou, se quisermos, até agora), tinha sido história natural (cf. Adorno 2006b: 117), isto é, natureza como uma história de violência (cf. idem: 124).8) Adorno critica a Hegel a transformação desse efeito da história no sujeito – a impressão de que a história pertence ao domínio da natureza, com as suas leis e catástrofes naturais – numa visão filosófica que valoriza e trata a história enquanto natureza, ou seja, como algo que existe antes e fora do sujeito, o que entra em contradição com a própria visão hegeliana da liberdade como fim da história (cf. idem: 119). Segundo um apontamento em Negative Dialektik, “O (…) espírito do mundo [de Hegel] é a ideologia da história natural” (Adorno 2003b: 350), através do qual Hegel pratica uma característica identificação com o agressor (cf. Hullot-Kentor 2006: 247).9)

No segundo seminário, Adorno retoma a argumentação de “Die Idee der Naturgeschichte”, que foi acima exposta. Vale a pena somente notar que Adorno assinala que a ideia de natureza deve ter em conta que a natureza como paisagem é já algo de planeado, cultivado e organizado, caminhando no sentido da ideia de reserva natural (cf. Adorno 2006b: 121).10) Um tema caro a Adorno, o de mediação, volta a aparecer no meio da própria natureza.

Este género de voltas dialécticas forma o cerne das várias teorizações que tenho vindo a referir. Os textos que abordei interessam-se pelo momento em que se pode discernir a natureza na história e a história na natureza, embora usem frequentemente caminhos diferentes para chegar a essas combinações. O propósito destas inversões dialécticas, que funcionam como princípio argumentativo de vários destes textos, consiste em abordar momentos de instabilidade e de ambivalência na tradicional oposição entre natureza e história.11) Como Fredric Jameson nota a propósito de Adorno,

What is involved here is a reciprocal defamiliarisation of the two incommensurable poles of the dualism of Nature and History, but clearly enough – and on Adorno’s own formulation – this must be a perpetual process in which neither term ever comes to rest, any more than any ultimate synthesis emerges.

Jameson 2006: 99

Esta tarefa revela-se essencial já que a referida oposição serve de fundamento, deixado muitas vezes por questionar, de uma série de disciplinas e áreas de investigação, desde as ciências históricas e experimentais à história como ciência humana e a algumas das suas ideologias, incluindo acima de tudo o humanismo.

Serve este prólogo conceptual para fundamentar uma análise do conceito e metáfora de história natural na série de álbuns Les Cités Obscures, de François Schuiten e Benoît Peeters. A colaboração entre estes dois autores belgas tem produzido, desde há já quase trinta anos, um conjunto de livros algures entre a banda desenhada e o álbum ilustrado que tematizam as relações entre planeamento urbano, organização social e domínio da natureza, num contexto pós-moderno situado na encruzilhada entre utopia, ficção científica, história alternativa, e fantasia. A componente artística destes álbuns tem sido amplamente reconhecida e o seu fôlego imaginativo levou a que este universo diegético se perspectivasse através de ângulos inesperados: Schuiten e Peeters publicaram, entre outros, um guia turístico das cidades obscuras, uma colecção de recortes de um jornal publicado nesse universo, um mapa do continente das cidades obscuras editado com o aval do muito real Institut Geographique National de França e mesmo DVD’s. Tal como defendi em ensaio anterior, este universo encontra na categoria de meta-utopia uma descrição adequada às suas características:

As such, it is a type of utopia which is highly self-reflexive as a study about the possibilities and problems of the genre and its variants, constructing itself out of the immense field of utopian literature and thinking and pointing towards it and not so much to an outside against which it would be measured.

cf. Gomes 2007: 100

A história natural, enquanto conceito e metáfora, oferece um ponto de entrada invulgar neste universo, ao permitir analisar a relação estabelecida entre utopia e história, o uso da ciência para dominar a natureza e a mescla entre história e natureza. Começarei por considerar este último tema num álbum que difere um pouco dos outros, Souvenirs de l’Éternel Présent (2009). Em seguida, abordarei a presença das ciências duras no universo dos outros álbuns e a sua relação conflituosa com uma natureza que raramente se deixa dominar. Esta interacção entre história humana e história natural irá, julgo eu, coincidir com algumas das ideias que acima expus a propósito da discussão do conceito de história natural em Benjamin e em Adorno.

II

Souvenirs de l’Éternel Présent (2009), o mais recente álbum de Schuiten e Peeters, anuncia-se como uma variação do filme Taxandria (1994), de Raoul Servais, para o qual Schuiten contribuíra com vários desenhos. A produção conturbada do filme levou a que vários dos desenhos não fossem aproveitados, tendo um álbum sido editado em 1993 que aproveitava algum desse material (cf. Schuiten & Peeters 2009: 66-77). Em Le Guide des Cités (2002), um autêntico guia turístico sobre o universo das Cidades Obscuras, Schuiten e Peeters começaram a apropriar-se das narrativas e imagens produzidas em volta da cidade de Taxandria para fazer delas parte das Cidades Obscuras. Uma descrição unificadora é formulada e, numa estratégia típica dos álbuns, o realizador do filme aparece como personagem do seu próprio universo diegético: “Un personnage semble en tout cas avoir joué un rôle décisif dans ces événements, le professeur Servais, inventeur du ‘servaisgraphe’” (Schuiten & Peeters 2002: 184).12) Em mais uma alusão ao filme, o “professor” Servais aparece ainda como o autor de várias imagens que, comentam os autores do guia, reconstituem de forma muito convincente a cidade de Taxandria (cf. idem: 185). O guia contém ainda a vantagem de narrar e descrever aspectos do álbum de 2009 que são abordados elipticamente ou apenas considerados como parte do cenário.

Segundo o guia, a cidade de Taxandria teria sido devastada por um cataclismo natural, na sequência de terríveis manipulações científicas. No álbum, estas manipulações consistem na invenção de um aparelho capaz de produzir reproduções idênticas de qualquer coisa. Os cientistas de Taxandria, seguindo aliás o modelo do cientista típico deste universo, entusiasmam-se com a descoberta e produzem inúmeras cópias exactas de si mesmos, até que se torna impossível distinguir os originais das cópias.13)) Uma destas cópias decide duplicar o sol, um acto com consequências terríveis. Os dois sóis liquidificam a neve, fazem evaporar-se a água dos rios, incendeiam os produtos inflamáveis. Durante um incêndio que assola a cidade, Irina, a mulher do presidente, ela mesma duplicada, morre ao dar à luz uma criança com duas cabeças. Poucas horas depois, a cópia de Irina morre. Segue-se o cataclismo: uma série de ondas gigantes varre a cidade e, das entranhas da terra, surgem estalagmites de proporções titânicas, ao arrepio da forma como as estalagmites se criam no mundo natural. Pouco depois, um dos sóis extingue-se. Na sequência do trauma, declara-se então o reinado do Eterno Presente, do qual se banem as imagens, as máquinas e toda e qualquer forma de desenvolvimento – o progresso é erradicado. Qualquer referência ao passado ou ao futuro é interdita e os livros de história desaparecem. A ditadura do Eterno Presente torna- se tão preponderante que, de facto, o tempo deixa de correr e o próprio futuro desaparece. Aimé, a criança que protagoniza o álbum de 2009, chama a atenção, logo no início, para o facto de não lhe crescerem cabelos (cf. Schuiten & Peeters 2009: 6); estes só começam a nascer na última página do álbum, após Aimé conseguir escapar do mundo de Taxandria (cf. idem: 65).

A cidade de Taxandria justifica assim o seu nome botânico, visto fazer alusão a um género da família das Myrtaceae, as quais se caracterizam, entre outras coisas, por aquilo a que se chama folha persistente ou perene. Após o cataclismo, a cidade caracteriza-se por uma mistura heteróclita de elementos díspares. A ciência e arquitectura da cidade ao tempo do cataclismo são identificáveis como para-vitorianas, podendo aludir a um sub-género de ficção a que se chamou “Steampunk”, uma forma de ucronia em que os paradigmas científicos e tecnológicos actuais ou imaginários são atingidos através de meios característicos de períodos anteriores, como o motor a vapor. Esta caracterização pode aliás estender-se, com alguma liberdade, aos outros álbuns da série. Taxandria, contudo, mostra esta arquitectura para- vitoriana como uma ruína. Várias casas encontram-se tombadas ou com brechas; as ruas de paralelo apresentam subidas acentuadas para os lados; as molas gigantes de uma torre relógio tombam sobre a rua; um dos edifícios serve apenas como depósito de relógios e ampulhetas deitados fora (cf. Silva 2010: 25); todos os edifícios apresentam uma devastação marcada e meios rudimentares são usados para obviar as dificuldades causadas – as personagens frequentemente usam escadas e pequenas pontes improvisadas para passar de um edifício para outro. O que mais impressiona na cidade são as estalagmites surgidas durante o cataclismo. Segundo o guia, os habitantes ter-se-iam dedicado a talhar as estalagmites, transformando-as em colunas com capitéis coríntios (cf. Schuiten & Peeters 2002: 185). Contudo, como as estalagmites surgiram de forma natural, em ângulos improváveis, atravessando edifícios, transportando-os para o alto, a impressão dada ao leitor é a de uma série de colunas inacabadas, com as bases ainda semelhantes a estalagmites mas com a parte superior e os capitéis já talhados. Estas aparecem ora integradas nos edifícios ora como erupções selváticas e congeladas, parecendo ainda por vezes que os edifícios foram construídos a partir destas formações minerais. Como Bruno Mendes da Silva argumenta, “Em Taxandria a ausência de tempo reflecte-se no espaço” (Silva 2010: 20).

A interacção surpreendente entre as ruínas arquitectónicas e as estalagmites parcialmente apropriadas como colunas transmite ao leitor uma irredutível sensação de ser incapaz de distinguir entre formação natural e construção humana. Dado que se trata de um álbum marcadamente surrealista e fantasmagórico, em que uma parte considerável do enredo e do cenário consiste em voos da imaginação, o leitor é levado a imaginar que as casas pousadas em cima de estalagmites coríntias inacabadas também elas saíram do chão. A arquitectura, essa arte humana e historicamente documentada e periodizada, oferece-se, no delírio causado pelo álbum, como um objecto natural. A metáfora organicista usada até à exaustão nas ciências humanas deixa aqui de ser uma metáfora e passa a ser uma descrição apta da realidade. Casas nascem, crescem e decaem como plantas. É aqui que o conceito de história natural, sobretudo nas teorizações de Benjamin e de Adorno, se revela determinante. Por um lado, na sua irrupção a partir do mundo da natureza, o Eterno Presente parece querer congelar a história e anulá-la num presente – esse objecto fugidio das ontologias – permanente e igual todos os dias. A história, nascendo em estado de natureza, torna-se um objecto da ontologia e não da historiografia.14) O seu estado é o do ser e não do devir; a natureza que o álbum pressupõe é, não surpreendentemente, a das formações minerais e das águas estagnadas. Parecemos ouvir aqui Adorno, que procurava a natureza aí onde a história se mostra mais histórica. Por outro lado, a natureza é algo que irrompeu pelo mundo de Taxandria no passado distante, interrompendo-se o seu fluxo histórico, que se afirmava como determinado pelo progresso. O mundo do Eterno Presente é uma reacção humana a uma catástrofe ecológica. Ora a catástrofe, embora associada por Benjamin ao avanço inelutável do progresso, é também a marca da história como sucessão de momentos descontínuos. A própria aparição das estalagmites gigantes apresenta-se como interrupção e descontinuidade. Na transformação do mundo humano por fenómenos naturais imprevisíveis reconhecemos esse motivo definidor da história, que é a contingência. A contingência assegura a transitoriedade da sociedade humana anterior ao cataclismo e parece anunciar a transitoriedade do próprio mundo do Eterno Presente. De novo nos lembramos aqui de Adorno que, completando o quiasmo, procurava a história aí onde a natureza se mostrava mais natural. Ao unir uma história que tende para a ontologia e uma natureza que se define pela contingência, o álbum Souvenirs de l’Éternel Présent ilustra de forma exemplar esse conceito enigmático que é a história natural. Tal como a história natural, na sua apropriação filosófica, parece juntar dois termos num oximoro perigoso mas altamente produtivo, também este álbum conjuga elementos que nos habituámos a ver separados e que produzem uma contínua sensação de estranheza e desconforto.

Vistos pelo prisma da história natural, os restantes álbuns parecem empalidecer perante a força conceptual e sincrética do álbum de 2009. Isto deve-se também à estrutura narrativa adoptada na maioria dos álbuns da série, por oposição à de Souvenirs. Se naqueles a narração e construção de ambiente é mais convencional e linear (excluem-se deste grupo álbuns como Le Guide des Cités e L’Echo des Cités), Souvenirs depende de uma estrutura mais própria, a da memória.15) A sucessão de incidentes evita frequentemente a causalidade e os episódios individuais não incluem muitas vezes uma conclusão satisfatória. Parece por vezes que o protagonista atravessa o espaço de Taxandria com o único fim de o mostrar ao leitor, da mesma forma que se atravessa um museu. De acordo com os princípios internos deste Eterno Presente, a organização e disposição do álbum é mais espacial do que propriamente temporal e isso permite a sugestão de um conceito poderoso e aparentemente paradoxal, como é o de história natural, de uma forma mais imediata e comprimida do que nos outros álbuns.

III

O conceito de história natural permite ainda perspectivar de forma convincente alguns aspectos de outros álbuns da série. Na ausência da forte apropriação conceptual que caracteriza o álbum Souvenirs, o tema surge agora como enquadramento para histórias sobre a dominação ou domesticação da natureza, inserindo-se em narrativas plausíveis, se bem que de uma plausibilidade própria do género do fantástico ou da ficção científica. A ciência é aliás uma presença constante nos álbuns de Schuiten e Peeters, sendo frequentes as conjecturas e discussões científicas, tal como o trabalho de análise e experimentação. Em La Fièvre d’Urbicande, surpreendemos Eugen Robick, urbatecto, mais do que uma vez no acto de fazer medições e elaborar cálculos. Em L’Enfant Penchée, Axel Wappendorf, o cientista idoso mas temerário que mais vezes aparece nos álbuns das Cidades Obscuras, dedica-se a estudar a mecânica obscura de um planeta escondido que provoca estranhas perturbações gravitacionais no planeta das Cidades Obscuras. Wappendorf decide-se eventualmente a partir na direcção desse planeta, fazendo uso de um projéctil habitável a ser disparado por um canhão imenso. Tal como em De la Terre à la Lune (1865) e Autour de la Lune (1870), de Jules Verne, os modelos evidentes desta parte do álbum, a viagem de Wappendorf falha o alvo e depressa volta à Terra. Toda a preparação da viagem se caracteriza por uma total intrepidez que cedo se revela simples imprudência e o projecto não acaba em desastre por mero acaso. Segundo o guia das cidades, Wappendorf não seria um modelo dos cientistas deste continente e, no entanto, considera-se que, aí, a ciência depende em parte considerável da intuição, da imaginação e de métodos insólitos: as ciências seriam não exactas, mas aproximadas (cf. Schuiten & Peeters 2002: 53).

Uma amálgama de audácia e imprecisão caracteriza, aliás, uma boa parte das actividades científicas e tecnológicas nas Cidades Obscuras. É no seu confronto com o mundo natural que reencontramos o tema da história natural. Este manifesta-se normalmente através da tentativa de domesticação, ou simples erradicação, da natureza e a consequente irrupção descontrolada de uma natureza que não se deixa dominar.16) O caso de Brüsel é paradigmático. Baseando-se na história da cidade de Bruxelas, Schuiten e Peeters usam o episódio histórico e definidor da cobertura do rio Senne, sobre o qual se construiu uma série de novas avenidas, durante a segunda metade do século XIX. O episódio é ficcionalmente incluído no contexto de outra revolução urbana em Bruxelas, aquilo a que se chamou “bruxellisation”, um termo que designa o desenvolvimento anárquico de propriedade comercial numa cidade histórica. No caso das Cidades Obscuras, a transformação de Brüsel dá também lugar a filas de arranha-céus e avenidas desmesuradas. A cobertura do rio que neste universo também se chama Senne dá lugar no fim do álbum Brüsel a uma inundação de proporções excessivas.17)) À medida que os protagonistas do álbum abandonam a cidade de barco, alguns painéis mostram a imagem dantesca de um mar de onde despontam arranha- céus e árvores indiferentemente. O protagonista desse álbum, Constant Abeels, é um vendedor de plantas de plástico, com as quais pretende desembaraçar-se da falta de higiene provocada por uma vegetação orgânica. A insistência em vencer os ciclos de vida da natureza, substituindo-a por um simulacro plastificado e perene, é recompensada com uma tosse persistente que só desaparece quando Constant finalmente abandona Brüsel.18)

Dois curiosos exemplos de interacção entre o mundo humano e o mundo natural podem encontrar-se nas cidades de Blossfeldtstadt e de Calvani. Schuiten e Peeters inventam um entusiasmo inabalável nas Cidades Obscuras por um livro e um autor bem reais – Urformen der Kunst, de Karl Blossfeldt, um representante na fotografia da corrente alemã da “Neue Sachlichkeit” (Nova Objectividade). Blossfeldt ficou conhecido por produzir fotografias de plantas tiradas de perto, salientando formas e detalhes ornamentais, e argumentando que tanto a arte como a técnica teriam a aprender com as formas naturais: “The plant may be described as an architectural structure, shaped and designed ornamentally and objectively. (…) Not only, then, in the world of art, but equally in the realm of science, Nature is our best teacher” (Blossfeldt 1998: vii).19) No universo das Cidades Obscuras, as autoridades na pequena cidade de Brentano empenham-se numa reconstrução total da cidade à imagem das formas fotografadas por Blossfeldt. O entusiasmo é tanto que a cidade muda de nome para Blossfeldtstadt. Todos os edifícios passam a ostentar formas que recordam o leitor do mundo natural.

Calvani apresenta um exemplo bem mais radical. Desprezando a solução unicamente mimética de Blossfeldtstadt, os habitantes de Calvani optaram por importar o próprio mundo natural para dentro dos seus edifícios. Segundo a racionalização em discurso indirecto livre por parte dos autores do guia das cidades, “si on aimait les plantes, il ne fallait pas les figer dans la pierre, mais bien leur donner les moyens de s’épanouir” (Schuiten & Peeters 2002: 111). A cidade passa a constituir-se de vastos palácios de cristal destinados a albergar jardins e a servir de estufas para exemplares de plantas exóticas. Num exemplo típico do dialogismo que caracteriza estes álbuns, as opiniões dividem-se. Pela sua parte, Isidore Louis, o protagonista do álbum O Arquivista, relata:

<blockquote> Há quem afirme que este grande entusiasmo, porém, esmoreceu quase tão depressa como se tinha imposto. Doenças estranhas ter-se-iam desenvolvido nesta atmosfera pesada e húmida, as estufas teriam também caído em desuso, e a ingrata Natureza calvaniana teria retomado os seus direitos. Pessoalmente, não acredito em nada disto.

Schuiten & Peeters 2003: 28 <blockquote>

Os autores do guia das cidades parecem apoiar esta última exclamação de Louis, notando que as dificuldades enumeradas pelo arquivista teriam sido exageradas: era verdade que certas tempestades haviam danificado a frágil arquitectura da cidade e que alguns bairros periféricos haviam sido reconstruídos em estilo tradicional, mas os autores do guia reafirmam que a cidade permanece uma das mais agradáveis do continente (Schuiten & Peeters 2002: 112). É interessante notar a diferença de opinião de um álbum para outro. Enquanto O Arquivista insiste ainda numa incompatibilidade irredutível entre mundo humano e mundo natural, em que a natureza retoma os seus direitos de forma indiferente em relação às homenagens humanas, o guia oferece a imagem de uma cidade dedicada não apenas a emular a natureza, mas a tentar atingir uma relação harmoniosa, e progressivamente equilibrada, entre os dois universos. Ainda de acordo com o guia, a cidade parece ter atraído um grande número de cientistas, sobretudo botânicos e geneticistas, tendo finalmente reestruturado a economia em torno do turismo, das hortas e da viticultura.

A cidade de Urbicande oferece já um caso limite, em que humano e natural se distinguem mal, aproximando-se as suas relações das metáforas e conceitos de Souvenirs, embora se trate aqui de uma narrativa clara. A ideia de um cubo que, ao ser desenterrado, começa a aumentar de dimensão ao mesmo tempo que produz outros cubos, tomando o aspecto de uma rede ou de uma estrutura, alude ao nível estrutural em que funciona o conceito de história natural no álbum La Fièvre d’Urbicande. O estatuto de mineral com propriedades fantásticas e misteriosas parece afastar o cubo do domínio estrito da natureza, sugerindo que se pode tratar de um produto humano. Essa sugestão, contudo, nunca se concretiza ao longo do álbum. À medida que o cubo cresce, a população de Urbicande assiste impotente à ocupação da cidade por uma rede simultaneamente material e imaterial – o cubo cresce tranquilamente através dos edifícios, mas não se deixa ele mesmo atravessar. Quando o crescimento parece cessar, os habitantes da cidade apropriam-se da nova estrutura arquitectónica como de um objecto natural: apoiadas no cubo, constroem-se pontes, passadiços, elevadores e mesmo culturas agrícolas suspensas. O cubo, contudo, fazendo justiça à transitoriedade do natural, volta inesperadamente a crescer, o que reduz as novas construções a um campo de ruínas. A comunidade traumatizada decide iniciar um projecto ambicioso – reconstruir o cubo, ou pelo menos um seu simulacro, através de meios humanos. Eugen Robick, o protagonista do álbum, adopta então uma solução ainda mais radical, dedicando-se nas últimas páginas a esculpir a partir da própria rocha um cubo semelhante ao que iniciou tudo. Estes artefactos humanos anunciam contudo o seu fracasso, por serem incapazes de emular a contingência definidora do cubo.

As ruínas de Urbicande após a passagem do cubo indicam um último exemplo de como a história natural actua no universo das Cidades Obscuras. De facto, voltando a Benjamin, a ruína, que assinala o vestígio da implantação da história na paisagem, representa um esplendor transitório, uma decadência insuperável (cf. Benjamin 2009: 176, 178). E, se as alegorias são no mundo dos pensamentos aquilo que as ruínas são no mundo das coisas (cf. ibidem), então a seguinte citação sobre a alegoria ganha uma força material súbita: “in allegory the observer is confronted with the facies hippocratica of history as a petrified, primordial landscape” (idem: 166). A história petrificada encontra a sua representação mais acabada na ruína semi-destruída. No continente das Cidades Obscuras, a ruína é um dos objectos arquitectónicos mais frequentes. Colunas, novamente em estilo coríntio, surgem das águas do Lac Vert (cf. Schuiten & Peeters 1996: 153-157); o relatório ficcional que compõe o álbum O Arquivista inclui três grandes ilustrações de ruínas com um forte carácter pitoresco (cf. Schuiten & Peeters 2003: 9, 25, 47), dando de novo razão a Benjamin, que caracterizava a ruína ainda como um artefacto, um objecto que, mais do que meramente histórico, era eminentemente artístico: “What prevails here is the current stylistic feeling, far more than the reminiscences of antiquity. That which lies here in ruins, the highly significant fragment, the remnant, is, in fact, the finest material in baroque creation” (Benjamin 2009: 178). Apoiando-se numa citação de Karl Borinski, Benjamin encontra exemplos da ruína como objecto de uma produção nos cenários renascentistas da cena do nascimento e adoração de Cristo, em que os artistas trocam o estábulo medieval pelas ruínas de templos da antiguidade clássica (cf. ibidem).

A ruína mais famosa deste universo é talvez a Torre que lhe serve de mito fundador. No tempo das Cidades Obscuras, a Torre já não existe e ninguém sabe onde esta tinha sido erguida. O álbum La Tour, contudo, narra os últimos tempos da Torre, antes do seu desabamento. Ao longo do álbum, a Torre aparece sempre com proporções tão descomunais que nunca dela vemos uma representação completa, exceptuando os quadros que falham clamorosamente na tentativa de lhe adivinhar a forma e as dimensões. No início do álbum, o protagonista, Giovanni Battista, encarregado de cuidar de uma pequena zona da Torre em evidente estado de degradação, queixa-se de não ter há muito tempo contacto com a base da Torre e com os seus inspectores. A viagem que então empreende em direcção ao cimo da Torre revela comunidades isoladas umas das outras e estados diversos de desenvolvimento. À medida que sobe na Torre, Giovanni vê máquinas cada vez mais sofisticadas, incluindo transportes a vapor, e grupos cada vez mais dispersos e desesperançados de habitantes. A Torre, nos seus vários estádios de construção, marca assim diferentes momentos de desenvolvimento histórico e tecnológico.20) À semelhança das catedrais góticas, o próprio edifício vai absorvendo os estilos artísticos em constante mudança e beneficiando das novas tecnologias (cf. Schuiten & Peeters 2008: 72-73). O cimo da Torre, contudo, é de novo um campo de ruínas (cf. idem: 80). Tendo perdido a esperança de alcançar o divino com a Torre, os seus construtores teriam abandonado a construção pelo seu centro oco e deixado as populações dos pisos intermédios à sua sorte. Antes de finalmente desabar, a Torre aparece assim ela mesma como uma ruína inacabada, um objecto arquitectónico em degradação avançada ainda antes de terminado. Não pode haver melhor exemplo de história natural enquanto história do transitório.

IV

Qualquer apelo à Natureza no contexto das Cidades Obscuras arrisca ver a desejada estabilidade ou perenidade natural esboroar-se perante a transitoriedade e a contingência que, essas sim, caracterizam o mundo natural e que se vêem assim transplantadas para um mundo humano que raras vezes entende a natureza envolvente, consequentemente fracassando nas suas tentativas de dominação. Mesmo sem a ajuda da natureza, essas características causam ainda um grande número de catástrofes na própria história humana, que se adapta mal à mudança, aos acidentes e à efemeridade dos seus planos e construções.

A panorâmica, na primeira parte deste texto, de algumas conceptualizações e desenvolvimentos imaginários a que a ideia de história natural se tem prestado teve por objectivo preparar uma análise do universo das Cidades Obscuras, elaborado por François Schuiten e Benoît Peeters numa série de álbuns, a partir desta perspectiva dialéctica de uma história com características naturais e de uma natureza com traços históricos. O universo de referências que alimenta estes álbuns é o de um século XIX possuído pelo mito da ciência e pela dominação da natureza. Os acontecimentos que ocupam as páginas desta série de álbuns prendem-se assim, muitas vezes, com uma relação intensa entre história e natureza: ora a história se paralisa num eterno presente, ora a natureza irrompe pela história dentro com a violência e a brevidade de uma revolução. Por vezes, as cidades imitam a natureza, outras vezes exibem-na e outras vezes ainda ocultam-na, abafando-a e substituindo-a por simulacros plastificados. Neste ensaio espero ter mostrado a grande variedade que caracteriza as relações entre história e natureza no mundo das Cidades Obscuras.

Esta análise pretende ter ainda outra utilidade. O conceito de utopia tem tradicionalmente assumido contornos conflituais em relação à ideia de história. Tem-se por vezes pretendido que a utopia marca o fim da história ou a sua suspensão, que está para além dos conflitos históricos, num lugar intermédio entre história e eternidade. Esse momento imaginário que liga intimamente história e eternidade na ideia de utopia está próximo da ideia de história natural, entendida sobretudo como uma história congelada, purgada de conflitos e contingências. Contudo, outra acepção da expressão, uma que a considere como transitoriedade eterna, pode ajudar a desbloquear algumas das ansiedades próprias do género da utopia e das suas ramificações filosóficas, ao colocar a utopia firmemente do lado de cá da história. Do ponto de vista da contingência, tanto distopias como utopias são fenómenos provisórios. Não devemos, pois, esperar até que as suas representações passem a um registo geológico imperfeito, como o de Darwin. Devemos antes abordá-las como momentos de uma história contemporânea que urge ir escrevendo, mesmo que esta nos apareça como uma contínua catástrofe natural.

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1)
O museu de história natural aproxima-se do jogo também por via daquilo que ambos têm em comum com o brinquedo e especialmente com o brinquedo como miniatura: “[La] miniaturisation donne le sens chiffré de l’histoire. Plutôt que le bricoleur, c’est le collectionneur qui se présente ainsi comme la figure voisine du joueur. En effet, de même qu’on collectionne des objets anciens, on collectionne des objets en miniature; mais, dans les deux cas, le collectionneur arrache l’objet à son éloignement diachronique, ou à sa contiguïté synchronique, pour le saisir dans la lointaine proximité de l’histoire” (Agamben 2002: 133). O coleccionador, que arranca as coisas e os corpos ao seu devir diacrónico e ao seu contexto sincrónico, junta numa colecção os objectos que agora oferecem o conhecimento do todo, quando são miniaturas de outros objectos que normalmente apenas se podem conhecer parcialmente (cf. idem: 132). No recurso à taxidermia e à construção de modelos à escala real, o museu de história natural evita parcialmente a necessidade da miniaturização (embora também faça uso dela, por exemplo em reproduções de fenómenos geológicos), encontrando-se também aí uma parte do seu fascínio. O uso de uma colecção de objectos para narrar uma história da natureza contribui para estabelecer o museu como espaço de jogo, estimulando o desejo de manipulação.
2)
Por outro lado, convém lembrar o discurso pronunciado por Engels no funeral de Marx, onde surge o famoso comentário: “Just as Darwin discovered the law of evolution in organic nature, so Marx discovered the law of evolution in human history” (apud Gould 2003: 115). Engels, como se sabe, estava muito mais ligado às ciências naturais do que Marx, tendo escrito Anti-Dühring e o póstumo Dialektik der Natur, dois volumes que lidam com temas das ciências da natureza e que fazem parte do esforço por parte de Engels em afirmar o materialismo dialéctico como uma ciência. O efeito do trabalho de Darwin em Marx é abordado de forma concisa e acessível em Gould 2003: 113-129.
3)
Este parágrafo de Darwin tem, contudo, consequências interessantes, ao insistir no facto de a história, mesmo a geológica, ser forçada a lidar com os materiais à sua disposição, aceitando a perda irrecuperável daquilo que desapareceu: “In this passage he emphasises the elements of time and of decay, and suggests how impossible it is to retrieve the full roster of evidence. Principles of change must serve (…). Darwin implies an imagined synchronicity between writing the record and being part of the experience, as any historian must. But the passage also admits how fitful and slight is any access to the forms of the past (…). Darwin’s theories demand recognition of loss, irrecuperable” (Beer 2008: xvii).
4)
Marx, por exemplo, criticava aquilo que via como a tendência de Darwin em transportar os traços da sociedade capitalista sua contemporânea para as suas descrições da natureza (cf. Gould 2003: 124-125). Gould nota que o próprio Darwin se debatera quanto à presença ou ausência de progresso no fenómeno da evolução, tendo-se pronunciado, em ocasiões diferentes, pelas duas posições (cf. Gould 2000: 257- 258). Segundo Gould, a história da ciência revela neste género de tendência uma outra forma de infiltração da história no domínio das ciências: “[it is] the subtle and inevitable hold that theory exerts upon data and observation. Reality does not speak to us objectively, and no scientist can be free from constraints of psyche and society. The greatest impediment to scientific innovation is usually a conceptual lock, not a factual lack” (idem: 276). Gould escreveu sobre este tema em várias ocasiões, sendo também relevante, por exemplo, a sua discussão da metáfora da cunha em Darwin (cf. Gould 2007: 300-312).
5)
De forma caracteristicamente materialista, Fredric Jameson aponta para um dos momentos mais típicos desta imbricação entre história natural e história humana: “the plague is, if anywhere, the place where human history and natural history most dramatically intersect, before the naked eye” Jameson 2006: 95).
6)
Neste ensaio, e sempre que possível, usei traduções para inglês ou francês. Nos poucos casos em que cito um texto a partir da edição alemã, a tradução é minha. Neste caso específico, utilizo a tradução para inglês de Robert Hullot-Kentor, incluída no seu volume de ensaios Things beyond Resemblance. Hullot- Kentor tem-se afirmado como tradutor e intérprete de Adorno, tendo, por exemplo, traduzido para inglês Ästhetische Theorie, Philosophie der neuen Musik, Kierkegaard: Konstruktion des Ästhetischen e editado a colecção fragmentária Currents of Music. A presente tradução apresenta inúmeros sinais de rigor e uma tendência para rever a tradição de tradução das obras de Adorno e de Benjamin: quase sempre que Hullot-Kentor recorre a uma tradução para as citações que Adorno faz, essa tradução aparece corrigida ou emendada. A impressão de rigor, contudo, cedo se torna uma impressão de alguma arrogância. Ao longo de Things beyond Resemblance, Hullot-Kentor revela-se altivo e agressivamente sarcástico (cf. Hullot-Kentor 2006: 190-192; 220-233) e as sucessivas correcções na tradução de “Die Idee der Naturgeschichte”, algumas um pouco idiossincráticas, esbarram na nota de fim 12, em que Hullot-Kentor explica que escolheu omitir uma frase do texto por esta não adiantar à compreensão do leitor: “Nothing of importance seems to be at stake, and so the phrase has been dropped to avoid confusion” (idem: 303n12). Uma comparação com o original (cf. Adorno 2003a: 357) revela que a nota está, na verdade, acoplada a uma frase situada uma página depois da frase a que se devia referir, pelo que o leitor fica sem saber qual era a frase confusa e aumenta essa confusão ao ler uma nota elíptica que se refere a outra parte do texto. Esta confusão deriva directamente do tipo de intervenção sem cerimónias que caracteriza as anotações e possivelmente até as opções de tradução de Hullot-Kentor. A dúvida sobre o rigor da tradução é ainda mais acentuada quando, noutra nota, o leitor se depara com uma conhecida citação de Franz Grillparzer, “Eifersucht ist eine Leidenschaft, / Die Eifer sucht, was Leiden schafft”, que não só é mal citada por Hullot-Kentor, como é atribuída a Siegfried Krakauer (cf. Hullot-Kentor 2006: 301n20). Contudo, feito este aviso e na ausência de uma alternativa, opto por usar a tradução de Hullot-Kentor.
7)
O último parágrafo do ensaio de 1932 é indicativo dessa situação, ao fazer apenas duas referências não desenvolvidas a um materialismo histórico e a uma dialéctica materialista (Adorno 2006a: 269).
8)
Em Negative Dialektik, esta ideia atinge, como é frequente nos livros de Adorno, uma expressão lapidar: “A história humana, a contínua dominação da natureza, faz perseverar o inconsciente da natureza, o comer e ser comido” (Adorno 2003b: 348-349). Fredric Jameson assinala o horror que se segue a esta visão dantesca da história da natureza: “a hideous eternity of domination and hierarchy, designed at least to leave its subjects alive, but also and finally the violence of nature itself, organisms obliged to eat their whole waking life long, and to eat each other” (Jameson 2006: 96). Esta ideia aponta ainda na direcção de uma ideia tematizada em Dialektik der Aufklärung, e retomada em Ästhetik Theorie, a de que a liberdade do sujeito implica uma privação da liberdade do outro, da natureza (cf. Adorno 2010: 82). O tema da dominação da natureza é, aliás, constante no pensamento de Adorno, sendo as preocupações ecológicas proeminentes em Dialektik der Aufklärung e em Minima Moralia.
9)
Esta crítica é desenvolvida em Negative Dialektik, em que desta vez o alvo é a ideologia num contexto capitalista, em que o valor, em termos económicos, é transformado em coisa-em-si, em natureza. De acordo com o conceito de ideologia de Adorno, que é considerada uma aparência socialmente necessária, este processo é considerado real e, ao mesmo tempo, ideológico (cf. Adorno 2003b: 348).
10)
Neste aspecto, as considerações de Adorno aproximam-se das de Heidegger, quando este nota que a história aparece na natureza em casos como o cultivo agrícola, o campo de batalha e o lugar de culto (cf. Hanssen 2000: 20-21).
11)
Por outro lado, como Beatrice Hanssen nota a propósito da crítica de Benjamin ao conceito de eterno retorno de Nietzsche, está em causa a tentativa de pensar num só termo singularidade histórica e repetição: “Benjamin considered Nietzsche’s principle of repetition to be an inconclusive and insufficient explanation for one of the central antinomies of history, namely that a principle of repetition manifested itself in the form of historical periods or epochs while history itself was a singular and unrepeatable process. In fact, what Benjamin aspired to accomplish with his new notion of origin was nothing less than to think together, and to bring together in one term, historical singularity and repetition” (Hanssen 2000: 42).
12)
Sobre a “servaisgraphie”, cf. Silva 2010: 32n10.
13)
“[A] frequent characteristic of scientists and architects in the universe of the Obscure Cities is that they understand no middle term: their solutions are always as revolutionary as they are extravagant, and their failures are no less grand, which, by a satirical treatment, brings us close to the style of anti-utopia. This is aggravated by the fact that science in the Obscure Cities is not ‘an exact science’. It is constantly faced with inexplicable and uncontrollable phenomena, which disturb plans or the newly built cities.” (Gomes 2007: 93-94
14)
A própria historiografia protagoniza uma aparição surpreendente no álbum, quando Aimé descobre um livro – o único que parece existir neste universo – que conta a história do cataclismo que destruiu Taxandria. As primeiras frases do livro dão conta do estatuto reprimido e perturbador da história no mundo do eterno presente: “Osera-t-on dire qu’il y eut un commencement à nos malheurs, que notre éternité (bénie soit-elle!) eut elle-même une histoire? Sera-t-il permis, une seule fois, d’enfreindre la plus précieuse de nos lois pour évoquer ces jours (maudits soient-ils!) où le Temps s’écoulait encore?” (Schuiten & Peeters 2009 :12).
15)
O caso de Le Guide des Cités tem vantagens próprias, ao permitir a divisão do texto em pequenos artigos de informação turística e geográfica, incluindo uma interessante secção sobre fauna e flora, com algumas referências a espécies extintas ou em vias de extinção (cf. Schuiten & Peeters 2002: 16-21).
16)
Num parágrafo que resume muitos dos exemplos que eu examino em maior pormenor, João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos notam a convivência tensa entre história humana e mundo natural no universo das Cidades Obscuras: “[O] peso das plantas nesta série é bem visível. Não é a cidade de Samaris simbolizada pela drósera, uma planta carnívora? Não invadem as plantas as seculares pedras de A Torre do mesmo modo que os modernos edifícios da megalómana Brüsel, após o dilúvio que quase arrasou a cidade? Não é a cidade de Calvani uma imensa estufa e a cidade de Blossfeldtstadt inspirada nas fotografias que Karl Blossfeldt fez de plantas? Do mesmo modo, o crescimento geométrico do cubo- retículo de Urbicanda simboliza bem a força da natureza que nada detém, enquanto que os prolongamentos da série para outros suportes (desde os livros ilustrados até à Internet, passando por iniciativas como esta) são como raízes que se espalham sob a terra fértil, simbolizando a vida que pulsa por trás das imponentes fachadas de Alaxis, Brüsel ou Urbicanda. Uma vida que, na falta de bom senso, não deixará de ser posta em causa. Se não for possível uma ordem mais harmoniosa, a força da natureza far-se-á sentir, e poderá ser tarde demais. A metamorfose de Samaris e a degradação da Torre, a inundação de Brüsel e o terramoto que terminou o sonho de Urbicanda aí estão para o provar” (Lameiras & Santos 1998: 66-67).
17)
“Tudo começou com chuvas torrenciais que o fraco curso de água não conseguia absorver. Depois seguiu-se uma enchente, após as grandes marés equinociais. Da Allé Verte ao Quai au Foin, o coração da cidade encontrava-se submerso.” (Schuiten & Peeters 2003: 20
18)
Num outro álbum, La Route d’Armilia, uma história que, mais tarde, se revela como uma ficção composta por um habitante das Cidades Obscuras (cf. Gomes 2009), Brüsel surge de novo como vítima de uma misteriosa irrupção do mundo natural. Uma vegetação densa apodera-se em poucos minutos da cidade, atravessando arranha-céus de alto a baixo e saindo pelas janelas (cf. Schuiten & Peeters: 1988: 30-32).
19)
Numa recensão de 1928 ao volume de Blossfeldt, Walter Benjamin salienta o mútuo jogo entre arte e natureza, em que a última por um lado alimenta as novas formas da arte moderna, ao passo que nestas fotografias do mundo natural Benjamin adivinha uma tendência do fotógrafo para o gótico (cf. Benjamin 1991 III: 151-153). A imbricação dialéctica entre natureza e história própria do conceito de história natural parece assim de novo manifestar-se nesta recensão.
20)
oão Miguel Lameiras e João Ramalho Santos apontam também para a Torre como caso paradigmático da introdução da história no universo das Cidades Obscuras: “La Tour, autêntico mito fundador d’As Cidades Obscuras, (…) apesar dos anacronismos já referidos, introduz na série a noção de devir histórico, acrescentando um passado e uma origem mítica a um universo até então intemporal” (Lameiras & Santos 1998: 96).